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Gustavo Rubim

 FSCH-UNL

“Falhar o poema universal ou: quem diz que está vivo?”

 

Um dos problemas menos trabalhados pela tradição crítica de Ramos Rosa é o daquilo a que poderemos chamar, na esteira de uma longa linhagem, “sujeito”. Que género ou que figura de “sujeito” se pronuncia nos poemas de Ramos Rosa? A verdade é que se poderia descrever ou narrar a história da obra poética de Ramos Rosa a partir da ideia de uma mutação de sujeitos: do funcionário cansado, do amigo, do fumador que aparecem e falam nos poemas do início foi desaparecendo o rasto, foi ficando o homem sentado a uma mesa em que escreve ou o homem que toca num corpo de mulher, muitas vezes só bocados de um homem (a mão, a boca incompleta, etc.) e, a partir de certa altura, uma espécie de sujeito nulo, irredutível a nome ou pronome, de uma escrita que acontece sem onde nem quando. Poder-se-á conservar a ideia, proposta por Eduardo Lourenço num ensaio clássico de 1974, de que tal rarefação ascética provém coerentemente de um “excesso do real”? Relendo uma das antologias que Ramos Rosa fez de si mesmo — A mão de água e a mão de fogo (1987) —, procurarei sublinhar irredutíveis tensões internas resultantes da tentativa de suspender, em vista de uma espécie de absoluto poético, todas as determinações subjetivas. Trata-se, assim, de repor o distanciamento interrogativo capaz de moderar o desejo de identificação da tradição interpretativa com a ficção que parece alimentar uma das pretensões da poética de Ramos Rosa, que se poderia definir através do título deste mesmo Congresso: ‘António Ramos Rosa: escrever o poema universal’. A estranheza de um título tão emblemático como “Estou vivo e escrevo sol” terá sido perceptível ao próprio poeta enquanto sinal de que há uma sinonímia profunda entre escrever e falhar.

Gustavo Rubim ensina literatura na Nova/FCSH, em Lisboa. É autor dos livros ensaísticos Experiência da Alucinação — Camilo Pessanha e a Questão da Poesia (1993), Arte de Sublinhar (2003) e A Canção da Obra (2008). É também coautor, com Abel Barros Baptista, da ficção ensaística Importa-se de me Emprestar o Barroco? (2003). Tem vários estudos publicados em revistas portuguesas e brasileiras, como Colóquio-Letras, Relâmpago, Pequena Morte, Boletim de Pesquisa NELIC, Românica, Vértice, Lado7 e Textos e Contextos, entre outras. Integra a equipa do projeto “Estranhar Pessoa: um escrutínio das pretensões heteronímicas”, em cuja revista on-line (nº 3, outono de 2016) publicou o estudo “O hiper-autor”.

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